A matéria é antiga, mas a noticia continua atual.
O sucesso do padre-cantor
Fábio de Melo, o artista
que mais vende discos no país atualmente, reafirma
a força da música religiosa – católica e evangélica.
Um mercado que não conhece crise
que mais vende discos no país atualmente, reafirma
a força da música religiosa – católica e evangélica.
Um mercado que não conhece crise
Marcelo Marthe e Sérgio Martins
ELE
É FOGO
O
padre Fábio de Melo, que exibe um vistoso
relógio Diesel no pulso, não gosta de
ser fotografado com as mãos em posição
de prece. "É piegas", diz. Vindo de
uma congregação liberal, a Sagrado Coração
de Jesus, Melo manifesta sem medo um dos pecados capitais
– a vaidade. Usa calças justas, tem sobrancelhas
delineadas e, ainda que não admita em público,
já se submeteu a picadas de Botox para remover
rugas da testa e dos olhos. Seus cabelos, provavelmente
por inspiração do Espírito Santo,
emitem reflexos dourados. Apesar disso, rechaça
a imagem de padre galã. "Quando as fãs
vêm com histeria, logo corto. Não vou acender
fogueiras que não posso apagar", diz. O
mineiro de 37 anos prefere ser reconhecido por outros
dotes – os intelectuais. Ele é mestre em
antropologia teológica e autor de seis livros
de autoajuda numa linha poético-religiosa. Seu
maior incentivador nessa área – amigão
do peito, mesmo, do peitoral – é Gabriel
Chalita, ex-secretário de estado paulista e autor
prolífico. "Gabriel abriu muitas portas
para mim", diz. Em maio, lançarão
um livro em parceria. Título provisório:
Cartas entre Amigos – Medos Contemporâneos.
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Semanas atrás,
uma plateia composta na maioria por mulheres lotou por duas
noites o Canecão, a casa de shows mais tradicional
do Rio de Janeiro. Elas estavam ali para assistir à
gravação de um DVD do maior fenômeno musical
surgido no Brasil ultimamente: o padre-cantor Fábio
de Melo. Lançado no fim do ano passado, seu CD Vida
bateu nas 542 000 unidades comercializadas em menos
de 100 dias (agora, já está perto das 600 000).
Com isso, Melo tornou-se o número 1 em vendagem de
discos no país em 2008. Ficou à frente do padre
Marcelo Rossi, que ocupou o topo do ranking em 2006 e 2007
e caminhava para repetir o feito com os volumes 1 e 2 de seu
álbum ao vivo Paz Sim, Violência Não
– até ser atropelado pelo colega de batina. Enquanto
a indústria fonográfica laica se encontra estagnada,
esse mercado – tanto em sua vertente católica
quanto na evangélica – desconhece a crise. E,
aos poucos, demole o muro que o separa das paradas.
Esse processo começou
com a ascensão do padre Marcelo, há coisa de
dez anos. E teve outro lance importante em 2007, quando a
cantora Aline Barros – o maior fenômeno da música
evangélica, com 3 milhões de CDs e DVDs vendidos
– emplacou uma faixa numa novela das 8 da Globo. A canção
Recomeçar serviria apenas de tema do núcleo
evangélico do folhetim Duas Caras. Mas repercutiu
tanto que passou a ser tocada até em emissoras de rádio
nada religiosas. A Globo agora vai atacar na outra frente:
já anunciou que o próximo folhetim das 7, Caras
& Bocas, de Walcyr Carrasco, terá na trilha
uma música do padre Fábio de Melo (o noveleiro,
aliás, é grande amigo do religioso).
Fotos Oscar Cabral |
UMA IVETE SANGALO
MOVIDA A PRECE
Fernanda
Brum é uma artista de opiniões fortes.
Por exemplo, ela odeia revelar quantos discos já
vendeu. "Não conto moedas, penso apenas
nas almas que salvei." Militante antiaborto, ela
se decepcionou com Barack Obama ao saber que o presidente
americano anulou as restrições ao financiamento
de grupos pró-escolha. O ativismo de Fernanda
tem também um fundo pessoal. A cantora sofreu
quatro abortos espontâneos, e a gestação
de Isaac, seu único filho, foi repleta de dificuldades.
Quando fala de Isaac, por alguns momentos seu olhar
se suaviza e ela abre um sorriso largo. Filha de pais
evangélicos, Fernanda, que tem 32 anos e uma
voz que lembra muito a de Ivete Sangalo, cantava música
popular brasileira. Converteu-se após assistir
a um show de um grupo religioso. "Comprei todos
os discos deles e cancelei a peça em que iria
atuar e o álbum pop que iria gravar", conta.
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No lado evangélico,
há mais dois artistas que atravessaram fronteiras:
Regis Danese e Soraya Moraes. Ex-vocalista de apoio do grupo
de pagode Só pra Contrariar, Danese é autor
de Faz um Milagre em Mim, canção que
está tocando em rádios populares e até
foi incorporada ao repertório de artistas católicos.
"Gosto de levar a palavra de Cristo a quem ainda não
se converteu", diz ele. Soraya, por sua vez, foi o destaque
brasileiro do Grammy Latino, no ano passado. Ganhou em categorias
específicas de seu mercado, como na de melhor álbum
de música cristã – mas também bateu
concorrentes seculares como Vanessa da Mata, Jorge Vercilo
e Djavan na de melhor canção brasileira, com
a faixa Som da Chuva (em que roga: "Deixa Tua
glória encher este lugar / Deixa o céu descer
sobre nós").
O fenômeno
Fábio Melo leva essa aproximação com
o universo mundano a um extremo inédito. Marcelo Rossi,
o fenômeno da cantoria católica que o Brasil
conhecia até então, só sobe ao palco
de batina e usa a música e a dança para dar
colorido às suas missas. "Não me exponho
sem batina. Se o assédio com ela já é
grande, imagine sem", diz. Melo vai na direção
contrária: não gosta de parecer padre, na acepção
tradicional. Bem-apessoado e vaidoso, só usa roupas
de grife e cuida da beleza. Cultiva, enfim, uma imagem de
homem atraente. Musicalmente, também está a
anos-luz da "aeróbica de Jesus" do padre
Marcelo, pois tem a pretensão de fazer MPB refinada.
O espetáculo no Canecão contou com uma banda
de vinte músicos e teve cenografia de superprodução.
Na casa de shows carioca, boa parte das fãs recitava
de cor suas letras poético-religiosas e entoava com
ele covers de artistas conhecidos – como Pai,
de Fábio Jr. Algumas, mais atiradas, lançavam
ao padre gracejos como "olha para mim" e "gostoso".
METALEIROS
QUE DIZEM AMÉM
Visto
por muito tempo como "coisa do demônio",
o heavy metal tem hoje lugar de destaque nos Hallels,
os festivais jovens católicos. O filão
foi desbravado por bandas como o Eterna, que
está na estrada há catorze anos. Assim
como outros expoentes do metal cristão, o grupo
não transita só por esse circuito: grava
discos por uma gravadora independente "laica"
e faz shows ao lado de bandas idem. Isso é facilitado
pelo estilo: os cabeludos cantam em inglês e são
adeptos do metal melódico, aquele que tem influência
da música clássica e trata de temas épicos
e místicos. Letras que remetem às Escrituras,
como as deles, não causam a menor estranheza
nos fãs desse tipo de música. No momento,
o Eterna prepara um álbum inspirado no filme
A Paixão de Cristo – a sanguinolenta versão
de Mel Gibson para a via-crúcis. "Será
um disco conceitual. Cada faixa narrará uma das
doze últimas horas de Jesus", informa o
vocalista Leandro Caçoilo. Se for em aramaico,
ninguém notará a diferença.
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Seria injusto,
contudo, creditar o sucesso do padre apenas à sua imagem
de bonitão ou à embalagem moderna de sua música.
Melo é um religioso articulado, que cativa os fiéis
com sermões que traduzem conceitos teológicos
e filosóficos em imagens simples. Ele também
faz sucesso como autor de livros de autoajuda. Um de seus
títulos, Quem Me Roubou de Mim?, totaliza 250 000
exemplares comercializados e tem frequentado a lista dos mais
vendidos de VEJA. Outro deles, Mulheres de Aço e
de Flores – em que lança um olhar delicado
sobre as aflições femininas – já
passou dos 80 000. "Estudei muito, pois não
queria virar um padre de mídia banal", afirma.
Melo estourou agora
graças a um acordo de distribuição de
sua gravadora, a LGK, com a Som Livre, braço musical
da Globo – o que lhe proporciona spots publicitários
na emissora. Mas ele é prova de que um artista religioso
pode sobreviver mesmo se entrincheirado em seu meio. O padre
está na estrada lá se vão treze anos,
sempre com vendagens acima dos 25 000 discos. Isso porque
o mercado católico – e mais ainda o evangélico
– se autossustenta. A Paulinas-Comep, a maior gravadora
católica do país, lançou 28 títulos
e cresceu 10% em 2008. Os selos evangélicos também
seguem com ótima saúde. O circuito de shows
é intenso. Os católicos têm os Hallels,
encontros que mesclam catequese e música e atraem mais
de 100 000 jovens, em cidades como Franca e Brasília.
Em Fortaleza, há o Halleluyah, realizado nas mesmas
datas da maior micareta da capital cearense, que tem alcançado
público comparável ao dela. Há, ainda,
as "cristotecas", raves de música eletrônica
católica. No lado evangélico, não faltam
eventos de grande porte. Festivais como o Louvorzão,
realizado no Rio de Janeiro, chegam a reunir 150 000
jovens.
POP COM RECATO
A
cantora Aline Barros destoa do estereótipo
da mulher evangélica. Ela não prende os
cabelos, muito menos usa saias até os calcanhares.
Com 50 quilos distribuídos em 1,60 metro, olhos
castanhos e uma farta cabeleira, a carioca Aline, 32
anos, pinta o rosto, anda sempre perfumada e a balança
é seu purgatório. No almoço com
a reportagem de VEJA, ela beliscou um pequeno bife com
fritas e dispensou a sobremesa. "Doce, só
no fim de semana." Mas a vaidade, claro, obedece
a um mínimo de decoro. Saias e bermudas devem
estar na altura dos joelhos, e vestidos de alcinha são
cobertos por um casaquinho. Aline é casada com
o ex-jogador de futebol Gilmar, do São Paulo.
Eles são pais de Nicolas, de 6 anos. "Nós,
evangélicos, somos pessoas normais que simplesmente
decidiram viver para Jesus de forma linda. Para mim,
isso é um privilégio."
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Cientes de que
a música é uma ferramenta crucial para agregar
novas almas a seus rebanhos, não é de hoje que
os dois lados travam uma disputa peculiar nesse campo. Isso
levou a uma maior profissionalização e à
diversificação de estilos – do pop ao heavy
metal, do axé ao rap. Mirando-se no mercado de música
gospel americano, os evangélicos se destacaram antes
nisso. A principal banda de rock dessa área, o Oficina
G3, já tem vinte anos de carreira. A produção
musical católica é antiga, mas demorou mais
a se diversificar. O primeiro sacerdote a se aventurar numa
carreira musical foi o padre Zezinho – aquele que cantava
em missas munido de violão e pandeiro, para estranheza
dos fiéis da década de 70. "Todas as religiões
devem investir pesado na música. Ela é o chantilly
do bolo da vida", diz o padre, hoje com 67 anos e 118
discos gravados. Só nos anos 80 o pop chegou à
Igreja. O ritmo se acelerou para valer na década seguinte,
com a ascensão do movimento carismático e suas
missas festivas – de que os padres-cantores e demais
artistas atuais são tributários diretos. Mas,
mesmo para um estudioso como Samuel Araújo, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, a intensidade que o flerte dos
católicos com o profano vem atingindo impressiona.
"Um padre com imagem sexualizada é algo espantoso.
O que virá a seguir?", pergunta Araújo.
Nem Deus sabe.
SEM DECOTES
E SEM SEXO
Adriana
é o equivalente católico das pastoras-cantoras
evangélicas. Como as concorrentes, a artista
de 35 anos é recatada: maquiagem carregada e
decotes generosos, nem pensar (seu único pecado,
e não apenas religioso, são as calças
legging). "Não é com meu corpo que
vou chamar as pessoas para Deus", diz. Além
disso, seu pop meloso por vezes se confunde com música
de reunião de grupo de catecismo. Ela é
uma das campeãs de vendas do segmento (o CD Adriana
ao Vivo, de 2007, teve 50 000 cópias
comercializadas). "Comecei a cantar nas missas
aos 7 anos, por imposição de minha mãe",
conta. A profissionalização veio nos anos
90, quando foi vocalista de uma banda ligada à
comunidade carismática Canção Nova.
Adriana namora há três anos e acaba de
ficar noiva. Como manda a Igreja, garante que não
fará sexo antes do casamento. "É
difícil, mas não impossível."
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UM PAGODEIRO
REGENERADO
Na
terça-feira passada, durante a gravação
do DVD da cantora Mara Maravilha, ninguém estava
mais pimpão do que Regis Danese, produtor
do show. O intérprete mineiro desfilava com a
mulher, grávida de seis meses, numa prova de
sua redenção: o casamento, que estava
em crise, ganhou uma segunda chance depois que o cantor
virou evangélico. Ele deu entrevistas a rádios
e TVs e esperou pacientemente pela chegada de Mara para
apresentar sua nova composição. Ex-sertanejo
e ex-pagodeiro, Danese, de 35 anos, deixou uma carreira
de sucesso para trás, em nome da religião.
Gravou dois discos religiosos que não venderam
e foi esnobado por artistas do segmento divino. Até
que a balada Faz um Milagre em Mim estourou nas
rádios evangélicas e católicas.
"Hoje até o padre Marcelo canta minhas músicas",
orgulha-se.
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Lailson Santos |
A MUSA DO AXÉ
DE CRISTO
Jacquelinne
Michelly Trevisan – a Jake – é
uma Daniela Mercury cristã. A paulistana com
jeito de artista baiana é a cantora de Pó
Pará com Pó, uma droga de axé
com mensagem antidrogas cotada para ser um dos hits
do Carnaval de Salvador. Jake, de 29 anos, iniciou a
carreira num grupo de jovens católicos e gravou
seu primeiro CD há dois anos. O trabalho parecia
fadado à obscuridade até que, três
meses atrás, uma apresentação da
artista numa TV católica tornou-se sucesso no
site YouTube. O vídeo de Pó Pará
com Pó foi visto quase 600 000 vezes.
E Jake ganhou as bênçãos de medalhões
como Ivete Sangalo e Caetano Veloso. Sua agenda de micaretas
– católicas ou profanas – tem sido
intensa. "No começo, o pessoal caçoava:
olha lá o melô da Amy Winehouse e do Fábio
Assunção", diz ela. "Só
depois perceberam que ali há uma lição
de vida."
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Manoel Marques |
CABELUDOS
E TATUADOS, MAS BONS MENINOS
Um
conselho para quem depara com os integrantes do Oficina
G3: desconsidere as tatuagens, os cabelos compridos
e o som pesado, que fazem com que o grupo angarie fãs
até entre os adoradores do Metallica. Juninho
Afram (guitarra), Duca Tambasco (baixo), Jean Carllos
(teclados) e Mauro Henrique (vocais) são bons
meninos. Tanto que levam mulher e filhos para os ensaios.
O quarteto, que existe há vinte anos, tem uma
postura aberta. Divide o palco com católicos
e até com grupos chegados a um misticismo –
em 2001, eles tocaram no Rock in Rio, na mesma noite
que o Iron Maiden. E Depois da Guerra, seu mais recente
CD, foi produzido por Marcello Pompeu e Heros Trench,
do cavernoso grupo de rock Korzus. "Pompeu e Trench
não mexeram no nosso discurso. E são boas
pessoas, seja lá qual for a religião deles",
diz Carllos. A banda vende em média 150 000
cópias de cada disco, mas não há
prece que lhe dê chance nas FMs. "Um locutor
chegou a dizer que nem recebendo jabá tocaria
uma banda que falasse em Deus", afirma Afram. Falta
mesmo um santo forte.
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