Por Hermes C. Fernandes
Recentemente estive em
um debate radiofônico em que uma mesa formada por quatro pastores abordou suas
perspectivas acerca dos conflitos geracionais e da evasão de jovens das
igrejas. Contei-lhes sobre a maneira como meu pai logrou conquistar meu coração
com um singelo gesto de amor no momento de maior rebeldia em minha conturbada
adolescência.
Assim que terminei meu
relato, um dos pastores pediu para compartilhar sua própria experiência com o
seu pai. Imaginei que seria algo próximo do que relatei. Em vez disso, sua
história conseguiu embargar minha voz. Contou-nos que fora criado num lar
ateísta, e que seu pai detestava qualquer tipo de religiosidade. Já na
adolescência, foi trabalhar na empresa de seu pai. Qual foi sua surpresa quando
um dia a secretária convidou-o para fumar um baseado de maconha. Constrangido,
disse-lhe que não poderia fazer tal coisa, pois seu pai estava ali. Pelo que a
secretária retrucou, contando que seu próprio pai também consumia a droga. Com
o dinheiro dado pelo pai, ele e a secretária dirigiram-se a uma boca de fumo
próxima e adquiriram quantidade suficiente para ser consumida pelos três. Sob o
efeito da droga, pai e filho acabaram compartilhando os favores sexuais da secretária.
Imaginei que seu
relato sofreria uma guinada, mas em vez disso, ele contou que seu pai morreu
ateu, e que ele, por sua vez, veio a conhecer Jesus enquanto desfolhava uma
Bíblia. Impactado pelo Jesus que emergia das páginas dos Evangelhos, saiu à Sua
procura em várias igrejas, mas aquilo que era pregado dos púlpitos não parecia
em nada com a proposta do Jesus que conhecera. Mais tarde, ainda desiludido,
entrou numa igreja onde o discurso se assemelhava com o de Cristo, ficando ali até
tornar-se pastor após a conclusão de seu seminário.
Passei o dia pensando
sobre aquilo.
Como me sentiria
sabendo que meu próprio pai teria tido um fim daqueles? Como conviveria com a
ideia de que ele poderia estar no inferno, enquanto eu estivesse convidando
pessoas a desfrutarem do céu?
Sou a terceira geração
de pastores da minha família. Meu avô materno foi pastor. Meu pai, idem. Meus tios e primos por parte de
mãe, meus cunhados e irmãos, são todos cristãos comprometidos com o Reino de
Deus. Isso me traz um enorme conforto. Sei que ao deixarmos este mundo, reencontrar-nos-emos
na glória celestial.
Como compartilhar tal
conforto com quem tem uma história diferente da minha?
Creio firmemente que
um dos papéis que devem ser desempenhados pela igreja é a promoção da conversão
dos pais aos filhos e dos filhos aos pais. Em se tratando de famílias onde os pais
e os filhos servem ou serviram a Cristo, tal missão é relativamente fácil. Mas
como podemos reconciliar pais e filhos quando os mesmos se encontram em posição
antagônica com relação a Cristo?
Para responder a isso,
temos que considerar a abrangência da obra reconciliadora promovida por Cristo
em Sua Cruz.
“E que, havendo por ele feito a paz pelo sangue
da sua cruz, por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, tanto
as que estão na terra, como as que estão nos céus.”
Colossenses 1:20
Colossenses 1:20
Nada ficou fora do
escopo desta reconciliação. Todas as gerações passadas, presentes e futuras. Em
termos espaciais, podemos dizer que o termo “céus” refere-se ao avesso da
realidade, isto é, àquilo que não é perceptível aos sentidos, à esfera
espiritual, também chamada de “regiões celestiais”. Não se trata, portanto, de
uma localização geográfica, algum ponto para além das galáxias. Quando se fala
de céu como estando acima de nós, trata-se de uma metáfora que indica a sua
superioridade em relação à esfera terrena.
Lembrando a teoria dos conjuntos que
aprendemos ainda no ensino fundamental, o céu contém a terra. Estamos rodeados
pelos céus, tanto o sideral, quanto o espiritual. Por isso, Paulo cita os
filósofos gregos no areópago de Atenas: “Nele vivemos, e nos movemos, e existimos; como também alguns
dos vossos poetas disseram: Pois somos também sua geração” (Atos 17:28).
No sentido temporal, o
termo “céus” refere-se ao futuro, ao porvir. O que hoje é latente, no futuro
será patente. O que hoje se oculta, no futuro será revelado. Coisas que nossos
olhos ainda não viram e nossos ouvidos jamais ouviram, todavia, já estão
preparadas para aqueles que amam a Deus. Embora reais hoje, são imperceptíveis
aos sentidos humanos, mesmo estando imersos nesta realidade.
Já o termo “terra” é
uma referência ao presente, ao que nos é contemporâneo e patente aos olhos, ao
momento histórico em que estamos vivendo.
Para nós, humanos,
céus e terra são realidades distintas. Vivemos o presente e ansiamos pelo
futuro. Porém, para Deus, são facetas da mesma realidade, para quem não há
distinção entre passado, presente e futuro. Ele os habita concomitantemente, podendo
transitar livremente entre eles. Para Deus, o passado não passou e o futuro é
tão presente quanto o próprio presente.
Com estas definições
em mente, podemos dizer que céus e terra, presente e futuro, bem como os que
neles habitam, foram reconciliados com Deus em Cristo Jesus. Mas não para por aí.
Em outra passagem,
Paulo vai um pouco mais longe, incluindo também o passado no escopo desta
reconciliação.
“Para que ao nome de Jesus se dobre todo o
joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra, e toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor,
para glória de Deus Pai.” Filipenses 2:10-11
A expressão “debaixo da terra” refere-se ao passado
e seus habitantes, àquela esfera existencial abaixo de camadas sucessivas de
poeira histórica. Aquilo que foi e já não o é. Metaforicamente, é o mundo dos
mortos, às vezes chamado de inferno (grego Hades,
hebraico Sheol).
Tudo quanto hoje está
na superfície, um dia estará “debaixo da terra”. O que hoje é presente, amanhã
será passado. O dia chamado “hoje”, o momento chamado “agora” é que determinará
o que vai pra debaixo da terra e o que será remetido aos céus, o que vai ficar
perdido no passado para sempre, e o que será remetido ao futuro.
O escritor de Hebreus
afirma que há coisas abaláveis que precisam ser removidas, para que somente as
inabaláveis permaneçam (Hb.12:27-29). Todas terão que passar pela prova de
fogo. Nas palavras de Paulo, aquilo que for palha não subsistirá, mas o que for
ouro, prata ou pedra preciosa permanecerá. O dia demonstrará com que material
edificamos nossa existência. Se o que houvermos feito se mostrar resistente ao
tempo e ao fogo, seremos galardoados. Caso contrário, sofreremos prejuízo.
Ainda nas palavras do apóstolo, “o tal
será salvo todavia como que pelo fogo” (1 Co.3:15). Em outras palavras, sua existência será condenada ao passado (de lá não passará!), porém,
sua essência será reconciliada com
Deus, mesmo que pelo fogo. Não haverá segunda chance! O que se viveu, viveu. O
passado se manterá intocável. O inferno só é eterno porque Deus decidiu
que o passado não pode ser alterado.
A despeito disso, o
passado pode ser relido, reinterpretado à luz da contribuição que deu ao
futuro. Dizer que Cristo tem a chave do hades (inferno) pode significar que em
Cristo temos a chave hermenêutica da história (e não apenas das Escrituras!).
Através d’Aquele que era, que é e que há de vir, podemos reexaminar o passado e
reinterpretá-lo.
Dizer que os
habitantes das esferas inferiores haveriam de confessar o senhorio de Cristo é
o mesmo que afirmar que teriam suas consciências finalmente reconciliadas com
Deus. Afinal, como afirmou Paulo, quem quer que com sua boca confessar que
Jesus é o Senhor, “será salvo”
(Rm.10:9).
Seu passado continua
lá, onde sempre esteve. Porém, agora, seus olhos são desvendados, e sua mente
capaz de processar a síntese, dando-lhe uma visão panorâmica da história, e de
como sua própria existência se encaixa no propósito divino, ainda que pareça
ter sido um completo desperdício. Deus, o grande Alquimista e Reciclador do
Universo sabe como transformar lixo existencial em ouro!
Mesmo um pecado como o
de Davi com Bate-seba pode resultar numa bênção como Salomão.
O propósito de Deus é
alinhar todas as coisas, como quem justifica as linhas de um texto digitado no
computador.
Prelúdio, interlúdio e
poslúdio se harmonizam na grande sinfonia da história, composta e regida pelo
sumo maestro.
João ficou estupefato
quando se lhe descortinou a realidade por trás do cenário da existência. Em seu
relato registrado no livro de Apocalipse, o vidente afirma ter ouvido “toda a criatura que está no céu, e na
terra, e debaixo da terra, e que está no mar, e a todas as coisas que neles há,
dizer: Ao que está assentado sobre o trono, e ao Cordeiro, sejam dadas ações de
graças, e honra, e glória, e poder para todo o sempre” (Apocalipse
5:13). Nenhuma esfera existencial ficou de fora do escopo da redenção.
Se faltasse uma só
esfera, seria como um coral em que não houvesse uma das várias categorias de
vozes: contralto, tenor, barítono, baixo e soprano. Sob a batuta de Cristo, as
diferentes categorias vocais se harmonizam.
Poderíamos definir a
reconciliação como uma harmonização de cada fato dentro do quadro geral da
história. Cada peça do mosaico encontrará seu lugar e se harmonizará com as
demais, provendo um sentido amplo e profundo da trama universal.
Ser reconciliado é
compreender seu papel dentro da execução dos propósitos divinos e assim, ter
sua alma apaziguada. É compreender o dom da vida sob a perspectiva de um
propósito que a transcende.
A maior necessidade do
ser humano não é de sobrevivência ou de conforto material, mas de encontrar
sentido para sua existência. O acaso não nos convence. O caos não nos parece razoável.
Almejamos desesperadamente beleza, simetria, destino, propósito. A razão pela
qual nos sentimos tão miseráveis perante as tragédias é que elas não fazem o
menor sentido. Que sentido haveria num pai enterrar seu próprio filho? A ordem
natural não é que os filhos enterrem os pais? Que sentido há num cataclismo que
ceifa milhares de vidas? Não nos soa como um desperdício? Como explicar a
prodigalidade da natureza? Ainda que não admitamos, no fundo, achamos que Deus
nos deve alguma explicação. Mas na maioria das vezes, Ele parece manter-Se em
silêncio. É como se sussurrasse em nossos ouvidos o que disse a Pedro: “O que eu faço não o sabes tu agora, mas tu
o saberás depois” (João 13:7).
A vida precisa valer a
pena, e para tal, tem que fazer sentido. Salvar-se é perceber-se parte de um
plano maior. Somos salvos da insignificância. Ser salvo seria viver por aquilo
pelo qual se dispõe a morrer. É reconhecer que a missão que recebemos ao nascer
é mais importante e sagrada do que a vida em si (At.20:24). E segundo Jesus, somente abrindo mão dela é que
se pode salvá-la. O inverso também é verdadeiro. Quando se faz questão de
preservá-la, ela escorre por entre os dedos (Lc.17:33). Quem nunca se dispôs a
um sacrifício por um bem maior, não sabe realmente o que é viver.
Viver pela fé é
encontrar este sentido na perspectiva do futuro. É ter a certeza de que no
final tudo se encaixará perfeitamente, e de que não ficarão perguntas sem
respostas. Não que Deus nos deva explicação, mas Ele certamente fará questão de
nos desvendar os olhos a fim de que nos maravilhemos e nos regozijemos em Seu
glorioso plano.
Ao deixarmos a esfera
temporal, encontramos a plenitude do sentido em retrospectiva. Por enquanto,
resta-nos alegrar-nos com vislumbres proporcionados pela fé. Há coisas que
ainda não compreendo, mas prefiro confiar. O futuro justificará as aflições do
tempo presente. Como bem disse Paulo: “Porque
para mim tenho por certo que as aflições deste tempo presente não são para
comparar com a glória que em nós há de ser revelada” (Rm.8:18).
Lembro-me da última
viagem que fiz com meu pai antes de seu falecimento em 2001. Estávamos
caminhando pelas ruas de sua terra natal, a pacata cidade de Irupi no interior
do Estado do Espírito Santo. De repente, ao pararmos de frente a um barranco,
meu pai começou a chorar. Contou-me que ali seu pai lhe havia dado a última
surra aos 19 anos. Sem jamais ter-lhe dado uma explicação, seu pai tomou um
chicote usado em burro, e bateu nele até deixa-lo arriado. Na madrugada
seguinte, meu pai pegou suas coisas e saiu de casa em direção ao Rio de
Janeiro. Senti a dor que ainda havia no coração do meu velho pai e quis
atenuá-la, consolando-o de alguma maneira. Como que por insight, disse-lhe:
Acho que tenho uma resposta, pai. Não sei o porquê, mas imagino que haja um
‘pra quê’. Não fosse aquela surra, o senhor não teria ido para o Rio, onde
conheceu a minha mãe, e principalmente, a Jesus. Logo, não fosse aquela surra
injusta, eu não estaria aqui ao seu lado.
Dizer que Jesus é o
Senhor é reconhecer que Ele sempre esteve por trás dos bastidores da história,
conduzindo-a segundo o Seu eterno propósito. É reconhecer que nada aconteceu,
acontece ou acontecerá por acaso. Tudo coopera para o bem daqueles que O amam e
que são chamados segundo o Seu propósito (Rm.8:28).
Cada nota dissonante
tem seu lugar na sinfonia composta por Deus. Isolando-a, não tem beleza alguma.
Mas colocando-a entre outras notas, percebe-se sua beleza.
Que beleza haveria na
grotesca cena da crucificação? Isaías exprime seu horror ao vislumbrá-la:
“Não tinha formosura nem beleza; e quando olhávamos
para ele, nenhuma beleza víamos, para que o desejássemos. Era desprezado, e rejeitado dos homens; homem de
dores, e experimen-tado nos sofrimentos; e, como um de quem os homens escondiam
o rosto, era desprezado, e não fizemos dele caso algum. Verdadeiramente ele tomou sobre si as nossas
enfermidades, e carregou com as nossas dores; e nós o reputávamos por aflito,
ferido de Deus, e oprimido. Mas ele foi ferido por causa das nossas
transgressões, e esmagado por causa das nossas iniquidades; o castigo que nos
traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados.” Isaías 53:2-5
A cruz, como um evento
isolado, parece-nos brutal, sem sentido, pitoresco, mas na perspectiva do plano
de redenção, é o capítulo mais glorioso da história da humanidade. É o amor
revelado em toda a sua majestade.
Jesus sabia o que
teria que passar, e quando Seus discípulos tentaram dissuadi-lo, Ele respondeu:
“Agora a minha alma está perturbada; e que
direi eu? Pai, salva-me desta hora? Mas para isto vim a esta hora.” João 12:27
Quando não se vive na
perspectiva da fé, valorizamos o momento em si, e não o que ele representa no
contexto geral. O que importa é livrar-nos da dor, do sofrimento momentâneo, e
não cumprir o propósito que nos trouxe até aqui. Porém, a fé nos faz vislumbrar
o resultado de tudo aquilo, de sorte que a dor é sublimada para que a missão
seja cumprida. Ainda que a alma se perturbe, ela não esmorecerá. O que tiver
que ser, será. Então, que se cumpra em nós a Sua vontade, mesmo que nos custe
nosso conforto.
O problema é que não
enxergamos a vida em perspectiva. Tudo o que nos importa é o aqui e o agora.
Esquecemo-nos do longo caminho percorrido por todos os que nos antecederam para
que chegássemos até aqui. Somos frutos de todas as contingências permitidas
pelo arquiteto das circunstâncias.
Com isso em vista,
Paulo vaticina: “Se esperamos em Cristo
só nesta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens” (1 Co.15:19).
Nossa vida é apenas um elo numa corrente interminável de elos que nos
antecederam e que nos sucederão.
Carregamos conosco o
DNA que recebemos de nossos progenitores e que repassaremos aos nossos
herdeiros.
Podemos dizer que em
certo sentido, nossa salvação pessoal implica também na reconciliação do tronco
do qual somos ramos. Nossos pais foram redimidos em nós. Sua história foi
justificada pelo fruto que ela produziu: nós. Repare: eu não disse que eles
foram redimidos POR nós, mas EM nós.
Talvez tenha sido
neste sentido que Paulo afirmou que a mulher seria salva “dando à luz filhos” (1 Tm.2:15). Um filho é capaz de redimensionar
nossa vida, atribuindo-lhe novo significado. Toda dor que a mulher sente ao
parir é justificada quando se lhe é dada a alegria de embalar nos braços o
fruto do seu ventre. Nas palavras de Jesus, “a
mulher quando está para dar à luz, sente tristeza, porque é chegada a sua hora,
mas, depois de nascida a criança, já não se lembra da aflição, pelo prazer de
ter vindo um homem ao mundo” (Jo.16:21).
Se nossos filhos são a
nossa “salvação” (a justificação de nossa existência), somos, por assim dizer,
a “salvação” dos nossos pais. Eles não são salvos por nós, mas EM NÓS!
O escritor de Hebreus
diz que em Abraão, Levi, seu descendente de quarta geração, deu o dízimo
(Hebreus 7:9). Portanto, o que meus filhos fizerem, de certo modo, será
creditado a mim. E o que eu faço hoje, de igual modo, pode ser creditado
àqueles que trago latentes em mim. Sou fruto de uma árvore, e ao mesmo tempo,
trago em mim as sementes que originarão muitas outras árvores e seus
respectivos frutos.
Em mim, Deus resgata a
história dos meus pais. Nos meus filhos, minha própria história será
justificada.
Não seria disso que
Paulo falava ao citar a curiosa e misteriosa prática de batismo pelos mortos? Repare no contexto:
“Porque assim como a morte veio por um homem,
também a ressurreição dos mortos veio por um homem. Porque, assim como todos morrem em Adão, assim também todos serão vivificados em Cristo. (...) Porque convém que reine até que haja posto a todos os
inimigos debaixo de seus pés. Ora, o
último inimigo que há de ser aniquilado é a morte. (...) E, quando todas as coisas lhe estiverem
sujeitas, então também o mesmo Filho se sujeitará àquele que todas as coisas
lhe sujeitou, para que Deus seja tudo em
todos. Doutra maneira, que farão os
que se batizam pelos mortos, se absolutamente os mortos não ressuscitam? Por
que se batizam eles então pelos mortos?” 1 Coríntios 15:21-22, 25-26, 28-29
Muito já foi dito
sobre a misteriosa passagem. Há até uma seita que promove batismo pelos mortos.
Particularmente não creio que Paulo estivesse falando de uma prática à parte do
habitual batismo promovido na igreja primitiva. Outrossim, creio que o apóstolo
estivesse reportando à abrangência da obra realizada por Cristo, representada
na cerimônia batismal.
Creio que tanto a
passagem em que Paulo diz que a mulher seria salva gerando filhos, quanto a que
fala do batismo pelos mortos apontam numa mesma direção. Somos salvos ‘pelo’
futuro! Não me refiro à salvação em termos soteriológicos, mas no sentido de
ressignificar a vida, dando-lhe um propósito que vá além de nosso horizonte
existencial. No caso da mulher dando à luz parece ser claro. Quanto ao batismo
pelos mortos, precisamos considerar que para nossos antepassados, nós somos o
futuro. Portanto, em nós suas vidas são ressignificadas[1].
Quando somos batizados, tudo aquilo de que somos compostos, nossa bagagem
existencial, nossa carga genética, nossa história desde nossos tataravôs, desce
conosco às águas batismais. Nossa história é redimida.
Isso parece encontrar
ressonância na promessa em que Deus afirma: “Sou
Deus zeloso, que visito a maldade dos pais nos filhos até a terceira e quarta
geração daqueles que me odeiam, mas faço misericórdia até MIL GERAÇÕES daqueles
que me amam e guardam os meus mandamentos” (Êx.20:5b-6).
Repare nisso: Deus
visita a maldade dos pais NOS filhos. Os filhos são perpetuadores da história
dos pais. Portanto, a redenção deles implica na redenção da história começada
em seus pais. Uma vez que a misericórdia triunfa sobre o juízo, sua abrangência
é sempre maior. O mesmo Deus que visita a maldade dos pais nos filhos até
quatro gerações, tem misericórdia dos pais nos filhos até MIL GERAÇÕES.
Jesus ratifica este
princípio ao desmascarar a hipocrisia dos fariseus:
"Ai de vocês, mestres da lei e fariseus,
hipócritas! Vocês edificam os túmulos dos profetas e adornam os monumentos dos
justos. E dizem: ‘Se tivéssemos vivido no tempo dos nossos antepassados,
não teríamos tomado parte com eles no derramamento do sangue dos profetas’. Assim, vocês testemunham contra si mesmos que são
descendentes dos que assassinaram os profetas. Acabem, pois, de encher a medida do pecado dos seus
antepassados!” Mateus 23:29-32
Ora, se um indivíduo
impenitente ajuda a completar a medida do pecado de seus antepassados, o que
acontece com aquele que se arrepende? Este não apenas começa uma nova história,
mas também provoca uma guinada na história dos seus ancestrais. Nossa história
particular é um capítulo da saga de nossa família. Por isso, Deus promete a
Abraão que através dele seriam benditas todas
as famílias da terra. Sempre que alguém se volta para Deus, seu tronco
familiar é abençoado.
Ao responder à
pergunta do carcereiro de Filipo, Paulo afiançou-lhe que se cresse em Jesus
Cristo, tanto ele quanto sua casa seriam salvos (At.16:31). Seria isso uma
referência aos seus descendentes, à sua família atual, ou também englobaria
seus ancestrais? O termo grego para casa é oikos,
que em alguns textos do Novo Testamento alude às origens de uma pessoa. Em Lucas
1:27 lemos que José era da “casa de Davi”. Por isso mesmo, Jesus era chamado de
“filho de Davi”.
Trago latente em mim
aqueles que do meu tronco ainda brotarão. Da mesma maneira como estive latente
em meus ancestrais. Por isso que quando Adão pecou, todos pecamos com ele, pois
já existíamos nele.
Quando ele caiu, todos caímos. Porém, fomos enxertados na
Videira Verdadeira que é Cristo, de maneira que também estávamos n’Ele durante
o tempo de Sua peregrinação, desde o Seu nascimento até Sua ascensão.
Mesmo quando
partirmos, continuaremos nossa peregrinação no mundo através daqueles que
carregarem nosso DNA. Viveremos neles de maneira imanente, assim como eles
vivem em nós agora de maneira latente. Porém, quando Cristo Se manifestar,
também nos manifestaremos com Ele, de sorte que deixaremos a existência imanente
pela existência patente. Porém, em Cristo existimos de maneira transcendente. Repare
nisso: quatro formas de existência.
Latente, imanente e
patente, transcendente.
Existimos de forma latente
em nossos ancestrais. Existiremos de forma imanente em nossos descendentes.
Existimos de forma patente durante o tempo de nossa peregrinação. Existiremos
de forma transcendente através de Cristo pelos séculos dos séculos, e através
disso, nossa essência será preservada para sempre.
[1] Ressignificação é o método utilizado em
neurolingüística para fazer com que as pessoas possam atribuir "novo
significado" a acontecimentos pela mudança de sua visão de mundo.
* Este texto foi publicado originalmente no dia 04/09/2012 sob o título "Salvos pelo futuro: a reconciliação dos que partiram."
* Este texto foi publicado originalmente no dia 04/09/2012 sob o título "Salvos pelo futuro: a reconciliação dos que partiram."
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